Amor(es): Entre o Vazio, o Olhar e o Encontro
“Mas afinal, é preciso começar a amar, para não adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à frustração, não se pode amar. ” Sigmund Freud. Introdução ao narcisismo.
- Para começar, o que é o amor?
Amar é, acima de tudo, ser visto. Poucas experiências são tão transformadoras quanto o amor. Ele chega, por vezes, como um sussurro suave, noutras, como um vendaval que rearranja tudo em nosso interior.
Ser amado é sentir-se verdadeiramente visto. É como se, diante do olhar do outro, os contornos da nossa alma se revelassem, ganhando forma e solidez. Quando alguém nos enxerga em nossa totalidade a sensação de estarmos soltos, dissociados, desconectados, se desfaz. O cuidado genuíno, a atenção que acolhe e a compreensão que valida, são os fios invisíveis que tecem essa rede de reconhecimento.
Ana Suy em “A gente mira no amor e acerta na solidão”, fala: "Quando o vazio de um toca no vazio do outro e nenhum dos dois se apavora, a gente diz que é amor". Essa frase nos convida a uma compreensão mais madura e profunda do amor. Não se trata de preencher lacunas ou de buscar no outro a completude que nos falta. Pelo contrário, o amor reside na capacidade de cada um sustentar o seu próprio vazio, de reconhecer suas próprias fragilidades e, ainda assim, encontrar no outro um porto seguro para compartilhar essa vulnerabilidade.
Amar é sustentar o vazio, sem a necessidade de tapá-lo com ilusões ou expectativas irreais. É aceitar que o outro também tem seus vazios, suas imperfeições, e amá-lo por isso, não apesar disso.
Que possamos olhar para o amor sendo também essa capacidade extraordinária de nos tornarmos mais inteiros, mais presentes, mais nós mesmos, quando somos vistos e amados. Que cada olhar, cada gesto de carinho, seja um lembrete de que o amor não é apenas um sentimento, mas um caminho para a descoberta e a consolidação do nosso eu, um contorno que nos abraça e nos faz sentir, finalmente, em casa.
Sabe aquele ditado da “outra metade da laranja” ou da “tampa da panela”? Eu sempre pensei nessas metáforas como um jeito simples de falar exatamente disso. Não se trata de encontrar a metade perdida da nossa laranja, como se estivéssemos incompletos à espera de alguém que nos preencha. O vazio precisa existir. Faz parte.
Amar é reconhecer que somos, cada um de nós, uma laranja pela metade, inteiros nas nossas metades, e que encontramos outras laranjas, também inteiras nas suas metades. O encontro não é para tapar o que falta, mas para compartilhar o que existe.
A mesma coisa com a panela e a tampa: não é sobre buscar a tampa que te falta, mas encontrar uma tampa que, com seus próprios faltantes, consiga coexistir com a sua panela. Cada um sustentando o que é, e o que falta.
- Sobre amor, paixão e luto
Muito se fala sobre a diferença entre paixão e amor. Uma perspectiva que venho utilizando (e elaborando nas minhas escutas clínicas e nos meus estudos) é a ideia do amor como um processo que, muitas vezes, só se torna possível após o luto da paixão.
O luto talvez já conheçamos: é o trabalho psíquico de elaboração diante de uma situação de perda. Um trabalho porque não acontece de uma hora para outra, mas sim por meio de um processo, que pode ser mais lento do que gostaríamos.
Voltando à paixão e ao amor. Embora esse seja um tema bastante presente nas discussões filosóficas e na literatura, a psicanálise freudiana, em seus textos clássicos, não fez uma diferenciação muito clara entre esses termos. Freud usava quase como sinônimos: enamoramento, paixão, amor... O que ele nos oferece de mais direto é a distinção entre dois tipos de escolha objetal: o amor de apoio e o amor narcisista.
Mas, a partir desses conceitos, e com o avanço da clínica e da teoria psicanalítica ao longo das décadas, hoje podemos fazer algumas diferenciações entre paixão e amor.
A paixão é, quase sempre, um estado de suspensão da realidade. Um momento de investimento libidinal intenso, concentrado, em que parece que toda a nossa energia psíquica se volta para aquele objeto: o outro. Mas, como muitos psicanalistas contemporâneos discutem (e como eu também observo no consultório), na paixão, amamos menos o outro e mais a nós mesmos no outro. Amamos a nossa idealização, o que o outro representa para a nossa completude imaginária. Voltando à metáfora "a outra metade da laranja", na paixão, amamos na verdade, a nossa própria metade da laranja idealizada (um dia perdida) projetada no outro.
Na paixão, tudo parece perfeito. Há uma ilusão de fusão, de encaixe absoluto. Aparece quase que uma sensação de que estamos completos, íntegros, na nossa melhor versão, mais fortes, mais bonitos, mais legais do que nunca. Isso nos revela justamente que a paixão é muito mais sobre nós mesmos. É o resgate da existência perfeita e completa que a gente carrega no nosso imaginário ideal. Por isso, o luto da paixão é reconhecer que não vai existir uma metade da laranja que se encaixe perfeita à sua metade presente. Essa metade faltante que pode ser preenchida é uma ilusão, é uma fantasia. O que existe nesse espaço é um vazio solitário. Esse é o trabalho de luto que precisa acontecer para que o amor consiga espaço para existir.
O amor só pode emergir quando o real do outro aparece e é reconhecido por nós. Quando o outro se mostra como separado de nós, e nós também como integralmente separados dele. São duas pessoas diferentes, imperfeitas, reais, se relacionando. O amor só nasce (se nascer) após o trabalho de elaborar o fim da idealização narcísica e apaixonada. Reconhecer que aquele outro, que parecia ser tudo o que queríamos, não é. O processo de luto vai, então, decidir: será que podemos continuar amando, mesmo assim? Será que podemos desejar o outro, não pelo que imaginávamos que ele fosse (ou que nós fossemos), mas pelo que ele é?
Por isso, eu gosto de pensar que o amor carrega, sempre, uma pequena ferida. Uma marca de perda. Um reconhecimento de que o outro é separado de nós e que nunca vai nos completar exatamente como sonhamos um dia.
- E sempre cabe nos perguntarmos: como o mundo contemporâneo tem modificado a forma como amamos?
Essa é uma pergunta inevitável. Cada época histórica impõe suas próprias condições e dificuldades para amar. E o nosso tempo não é diferente.
Se na última newsletter falamos de como a tecnologia tem atravessado nossos laços, hoje eu queria aprofundar um pouco mais nesse ponto. Como a Ana Suy bem coloca num dos seus vídeos da Casa do Saber: o tempo contemporâneo é muito mais propício à paixão do que ao amor.
Vivemos uma era de intensificação da imagem e da performance. Nas redes sociais, não idealizamos apenas nossa própria imagem, idealizamos também nossos relacionamentos, nossos encontros e até os possíveis parceiros que ainda nem conhecemos. Somos constantemente atravessados por narrativas de casais "perfeitos", com vidas impecáveis, fotos ensaiadas, declarações públicas de amor eterno. O resultado disso? Um aumento da intolerância à frustração. Uma menor capacidade de sustentar as imperfeições dos vínculos reais.
É como se estivéssemos coletivamente presos em uma sociedade da paixão, em que os laços precisam ser intensos, bonitos, instagramáveis, mas não necessariamente profundos. É como se o amor tivesse virado mais uma receita daquela vida perfeita que todos podem adquirir nas vitrines digitais.
O maior problema é que, diferente das receitas de bolo, em que, se você seguir os ingredientes e as quantidades à risca, o resultado será um produto perfeito, no amor não existe fórmula mágica. Justamente porque ele é constituído a partir de histórias e vivências de pessoas reais, que se diferem de forma complexa umas das outras.
Cada amor é muito individual e por isso é impossível elaborar uma receita universal. E é exatamente essa impossibilidade que abre margem para algo que vamos falar a seguir: a imposição de limites e regras aos amores alheios, a partir daquilo que a minha história me mostrou e me ensinou sobre o que é o amor - e talvez também das ideologias que me atravessaram e me consumiram ao longo da vida.
- Amar é um processo atravessado pela história, pela linguagem e pela alteridade.
Do ponto de vista da psicanálise, a forma como amamos não é algo que nascemos com. Ela se constrói a partir das experiências, primeiro a partir da forma como fomos amados e posteriormente a partir de cada amor que sentimos durante nossa trajetória.
Quando alguém reduz o amor a um único formato, seja em termos de gênero, orientação sexual ou normas sociais, está, na verdade, também reduzindo a si mesmo, sua forma de exercer esse afeto. Está se relacionando de forma empobrecida, limitando sua própria capacidade de viver o amor em toda a sua complexidade.
Se nós queremos amar com mais profundidade e autenticidade, é essencial que possamos reconhecer o amor na sua verdadeira dimensão psíquica: como um sentimento multifacetado, atravessado por contradições, por desejos, por identificações e por escolhas inconscientes. Amar de forma mais inteira implica reconhecer que as pessoas amam segundo suas histórias, suas faltas, suas vivências singulares. Implica, sobretudo, reconhecer a diversidade das formas de amar.
Negar essa diversidade, do outro ou de si mesmo, é também um modo de reforçar defesas psíquicas, de se prender a identificações rígidas, de se proteger de tudo aquilo que o desejo traz de imprevisível, de novo, de não controlável. E é exatamente essa rigidez que torna o amor menos profundo, reduzido.
Reconhecer a pluralidade das formas de amor, portanto, é um movimento de abertura interna. Uma ampliação da própria capacidade de amar. Uma expansão subjetiva que nos permite acessar, dentro de nós, outras camadas de afeto, de desejo e de cuidado. Recentemente tivemos a semana do orgulho LGBTQIA+, e é importante reforçar que pensar a diversidade é também pensar o amor como uma experiência psíquica que só alcança sua potência quando aceita a singularidade de cada existência.
Se algo desses lapsos te lembrou de algum laço, será um prazer conhecer sua experiência. Construir um espaço de trocas verdadeiras é nossa maior intenção por aqui. Deixe um comentário ou nos envie suas percepções!
Até o próximo lapso!
Com carinho,
Lorena e Gabriela.